Jéssica e Natália Araújo Duarte
Os dez filhos foram viver com a irmã de Telma. Na época, o pai não pegou a guarda das crianças por influência da tia, que disse ao juiz que ele não teria condições de cuidar dos filhos por ter problemas com álcool. Durante um ano os irmãos viveram com a tia, após este período foram entregues ao abrigo NAIM localizado em Perus, onde ficaram morando até a maior idade e aos poucos saíram para refazer a vida no bairro em que nasceram.
Em 2016, Jéssica e Nathália foram transferidas para a Casa Lar, abrigo em Pirituba, extremo Sul de São Paulo. Nathália, a mais nova, seguirá na Casa até completar 18 anos, após isso sonha em sair para morar com a irmã e fazer a faculdade que ganhou dos padrinhos do antigo abrigo. Já Jéssica, que fez 18 anos ano passado, vive hoje em uma República Jovem, na zona norte, planeja terminar o último ano do Ensino Médio, permanecer no emprego e alugar uma casa com o irmão mais velho para, enfim, conquistar a guarda dos irmãos e voltar a morar com eles.
Jéssica Natali Araújo Duarte, 18 anos
A parte mais difícil de sair da Casa Lar foi deixar os meus irmãos. Parecia que eu estava deixando a minha alma. Desde que a gente foi para o primeiro abrigo, eu cuidei muito deles, da Nathália, da Sabrina (12) e do Matheus (14). Eu sempre tentei fazer tudo por eles lá dentro, porque eu sou a mais velha, sabe? Era o meu papel, fui a mãe deles.
A minha saída foi muita rápida, assim que fiz aniversário tive que me mudar. Eu até pedi pra juíza me deixar ficar até o fim do mês, tempo do meu irmão encontrar uma casa pra gente, mas ela foi bem arrogante e disse que, ou eu arrumava um lugar para sair imediatamente após os 18 anos, ou eu viria para a república. Deixei tudo lá: irmão, amigos, namorado.
Agora não vejo a hora de organizar as coisas com o meu irmão mais velho, pra ter uma estrutura, alugar uma casa e pegar a guarda dos menores. Ele não está trabalhando atualmente, mas já falei: relaxa, a gente arruma um trampo pra você. Eu sou assim, tem tempo ruim não. Aí poderemos dividir: um mês eu pago o aluguel e ele as contas da casa, no outro muda e assim vai.
Eu trabalho desde os 16 anos. Já passei por escritório, fazia de tudo lá. Trampei no Sindicato dos Bancários, no administrativo, aliás, foi o Travessia que me encaminhou pra essa vaga. E agora sou vendedora em uma loja de bijuterias dentro do shopping. Este é o meu emprego preferido até agora, os donos gostam muito de mim. No trabalho eu sou o tipo de pessoa que se dedica, porque, querendo ou não, a gente que vem de abrigo sofre muito preconceito. Infelizmente ainda tem muita coisa bosta nesse mundo.
Se estou de mau humor eu respiro, conto até dez antes de entrar no trabalho e deixo os problemas do lado de fora.
Em casa é diferente, né?! Se eu to puta, chego e subo direto pro quarto, não olho e nem falo com ninguém. As meninas já conhecem meu jeitinho. Agora a gente se dá bem. Mas no início foi estranho morar aqui na República Jovem com sete meninas, porque cada uma vem de um tipo de abrigo, sabe? Eu estava acostumada a ter tarefas, manter as coisas arrumadas e limpas, e algumas delas não. Isso dava briga! Agora tá de boa. Até a vizinhança tá mais tranquila.
Quando minha mãe morreu e fomos morar na casa da minha tia foi bem difícil. Porque eu não me sentia em casa, não me sentia em família, estava ali de favor. A morte da minha mãe foi bastante noticiada, por isso recebemos várias doações de quem se solidarizou com o caso. Lembro que assim que as ajudas pararam de chegar, minha tia começou a se programar para entregar a gente para o abrigo.
Desde então perdemos o contato, eu até sei onde ela mora, mas não temos vínculo. Minha família são os meus irmãos. Nem meu pai é próximo de nós. Uma vez inventamos de passar o natal com o meu pai. Arrumamos nossas coisas e, no dia 24 de dezembro, viajamos de Pirituba até a Penha, onde ele mora. Como um dos meus irmãos é vizinho dele, pedimos permissão para ficar um pouco na casa dele também. Nesse meio tempo, meu pai saiu e voltou bêbado, supernervoso por não estarmos lá. Disse que devíamos respeito, pois era responsável por nós. Eu disse: se você é nosso pai, deveria ter nos criado. Ele chegou a levantar a mão pra mim, eu ameacei chamar a Polícia. Peguei meus irmãos, nossas mochilas e fomos embora. Neste ano passamos o Natal no trem de volta para Pirituba.
Não ter mais minha casa e mãe por perto foi muito duro, ir para o abrigo também. Mas com certeza foi melhor do que ter crescido com a minha tia ou o meu pai. Admito que se não fosse isso, hoje eu não seria quem eu sou e nem teria a educação que tenho. Eu aprendi a falar melhor, aprendi a conversar, a comer direito. Até no trabalhou sou reconhecida por isso quando comparada aos outros funcionários. Então, no final, o saldo foi positivo. O Travessia também foi bacana, nas oficinas eu pude aprender bastante sobre o mercado de trabalho e, apesar de não botar muito em prática, aprendi sobre controle financeiro. Agora eu até estou tentando economizar para conseguir morar com os meus irmãos.
Eu nunca fui muito focada nos estudos, então fico muito feliz com as conquistas da Nathália que acabou de concluir o terceiro ano e é a primeira da família a ter o Ensino Médio completo. Daqui a pouco ela começa a fazer psicologia com a bolsa que ganhou. Morro de orgulho!
Eu mudei de escolas algumas vezes, só no último ano passei por três. A última eu não tinha a menor condição de continuar. Sabe quando um lugar exala preconceito? Então, lá era assim. Me sentia mal o tempo inteiro e resolvi não ir mais. Ano que vem eu volto e concluo o Ensino Médio.
Nathália Araújo Duarte, 17 anos
Ver a minha irmã indo embora foi bem estranho. Eu fiquei assustada com o fato de perceber que seria a próxima a sair do abrigo e encarar o mundo. Sei lá, acho que tenho medo das coisas não darem certo. Eu não gosto de mudanças, levo tempo para me adaptar. Foi como quando chegamos ao primeiro abrigo, me recordo que apesar de não ter sido difícil fazer amizades, o que eu gostava mesmo era de ficar sozinha no meu canto.
Eu também nunca desejei ser adotada. Por um tempo tive esperança dos meus irmãos pegarem nossa guarda, mas isso não aconteceu, eles pouco nos visitavam. Mas hoje entendo, eles moram longe e vir pra cá custa dinheiro, né?! Às vezes nem eu consigo sair daqui pra vê-los, nem sempre o bilhete do transporte público tem crédito.
Eu sei que esse medo que tenho do novo vai passar. Eu estou me adaptando agora, tenho amigos que moram próximo e eu posso sair para dançar e me divertir com eles. Além disso, estou focada no futuro dos meus estudos. Ganhei uma bolsa bancada por um clube de futebol para cursar psicologia, foi a assistente social que conheci no segundo abrigo que me ajudou a conquistar isso. E, além disso, minha imã está se planejando para que possamos morar juntas, ela também vai tentar uma vaga para mim na loja onde trabalha Eu tenho bastante mudança boa pela frente. Só não quero ir para a República Jovem, cansei de viver assim, pulando de galho em galho.
O Francisco, educador do Travessia, vem aqui e a gente conversa sobre o futuro, principalmente sobre a faculdade, já que ele também é psicólogo. Ele me disse que é importante ouvir as pessoas e eu gosto de fazer isso. Falamos sobre gastos também, a grana da bolsa do Projeto Âncora é o meu primeiro contato com um dinheiro só meu. Eu não boto muito em prática esse lance de controle financeiro, adoro gastar com besteiras de comer. Mas poder comprar meu celular foi algo que me deixou bem orgulhosa e feliz.
Não ter ficado com minha a minha tia ou meu pai foi bom. Sei lá como estaria hoje se tivesse crescido com eles…Talvez nem tivesse planejando fazer faculdade. Com o abrigo e os padrinhos a gente aprendeu bastante coisa.
São regras que não existiam na minha casa, talvez por minha mãe ter tantos filhos. Imagina cuidar de dez? Mas ela era muito carinhosa, principalmente com as meninas.
A parte ruim do abrigo, além das punições por aprontar, é ver as pessoas indo embora quando fazem 18 anos. Quando são adotados também é dolorido, apesar de ficarmos aliviados e felizes por eles. Outra coisa ruim também é o preconceito que existe contra nós.
Sem nem saberem que, muitas vezes, a gente tem mais coisas na dispensa que muitos que pensam mal de nós. Por isso eu não saio contando que moro em abrigo, só falo mesmo para quem confio. Normalmente digo que moro com os meus tios e irmão, de certa forma é verdade.
Sabe, sou feliz por até aqui ter conseguido trazer algumas pessoas comigo nessa jornada meio louca. Ano que vem estou planejando uma festona de aniversário com vários outros adolescentes do antigo abrigo que também vão completar 18 anos. Queremos fazer a festa e convidar a galera que já passou por lá. Vai ser muito da hora!