Wesley Augusto Jardim
Faz uma semana que fiz aniversário. Nem acredito: completei 18 anos… É uma mudança pra melhor. De verdade, mesmo, a vida toda acordei e dormi pensando: “o que é que eu vou fazer quando sair do acolhimento?” Não foi uma dúvida que ficou na minha cabeça um dia, uma semana.
A mente tortura, sabe? É uma pergunta que um adolescente não deveria se fazer. Muito menos uma criança. Mas esse dia chegou, enfim, e eu não surtei. Sinto quase um alívio.
Digo quase porque tenho altos e baixos. Tem dia que olho a lista de coisas para fazer e fico animado. Tem o curso de fotografia que acabo de entrar e é um sonho. Tem o trabalho de assistente de produção audiovisual que consegui nessa mesma escola onde estudo. Tem a decoração do meu quarto na república, que aos pouquinhos vai ficar com a minha cara. Teve a oficina de sexualidade do projeto Âncora, que trouxe muito debate importante sobre o fato de eu ser homossexual.
Mas faz parte respirar fundo e resolver as coisas chatas, né? Preciso tirar um monte de documentos e cuidar de burocracias como título de eleitor e carteira de reservista. Outro dia fui mudar o turno da escola para o período noturno e cadastrar meu novo endereço no bolsa-família. Tenho que pensar em conta para pagar, roupa para lavar… Afe, muita coisa. Mas estou livre. Me sinto como um passarinho que saiu da gaiola.
Eu tinha só um ano de idade quando me levaram para um orfanato. Minha irmã Jeniffer tinha cinco e o outro, Wellington, dois.
Eu recebi visitas da minha mãe lá até os meus sete anos. Ela foi proibida de me encontrar quando contei que uma educadora me batia e minha mãe agrediu essa mulher. A Justiça proibiu as visitas.
Ainda assim, ela conseguiu me ver até os 10 anos. Chegou a entrar no orfanato vestida de homem e ficou na porta da escola esperando eu sair. As autoridades não deixaram minha mãe ser presente na minha vida.
Meu pai não conheci. Ele era traficante e só saiu da cadeia quando eu fiz sete anos. Foi assassinado no terceiro dia livre, na porta da casa dele. A Jenifer estava com 12 anos e Wellington, oito. Lembro que ficamos tristes mas não fomos capazes de nos ajudar.
A relação com meus irmãos sempre foi complicada. Nunca convivemos direito. Meu irmão não me defendia quando me chamavam de “bichinha” no orfanato. Pelo contrário, ele ainda me batia. Cheguei a ser jogado da escada por uns moleques e o Wellington não fez nada. Já a minha irmã ficava numa residência separada, em outro lugar. A gente não tinha contato, somos desconhecidos. No Âncora, com a educadora Olga, cheguei a procurar meu irmão. Mas desde que ele saiu do SAICA está no mundão e perdi o contato. Ele fugiu da república onde estava e a última coisa que ouvi dele antes disso foi “eu te amo e já era”. Também visitei minha irmã, tentei uma aproximação, mas não deu certo, ela tem a vida dela. Tudo bem. Foi importante tentar e ter a Olga do meu lado me acompanhando.
Sinto solidão. Mas gosto de ficar na janela do ônibus na ida e na volta do trabalho pensando no que ainda tenho para conquistar, sabe? Olhando para o futuro. Eu já desenhei um projeto de vida. Esse mapa do meu futuro eu fiz até por escrito. Elaborei com a ajuda da Olga e também do Ricardo Voz, que é o gerente do último SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) onde passei. Foram muitas e muitas conversas até eu desenhar esses planos. Tive muita ansiedade, muita mesmo. Mas ficou mais fácil saber como chegar onde quero. Ah, o que eu quero? Uma casa e uma família. Isso depois de fazer faculdade e viajar. Também sonho em ter filhos. Dois. Poderei adotar como casal homoafetivo quando tiver um companheiro. Quero dar a eles tudo o que eu não tive.
Toda criança merece uma infância feliz, né? A minha foi bagunçada demais. No orfanato eu me sentia desconfortável. As freiras eram rígidas na educação, em tudo. E eu apanhava muito… Por que? Por causa do meu jeito. Meu jeito de se ser, como dizem, viado. Hoje em dia sou homossexual e tenho orgulho de dizer que sou homossexual. Porque é a minha história, é o que sou. Mas imagina ser assim num ambiente religioso? Pecado foi a palavra que eu mais ouvi nas missas que eu era obrigado a ir três vezes por semana. Hoje sou ateu.
Também tem a ver com a minha vivência em orfanato e abrigos a minha dificuldade de me apegar às pessoas.
Quando você está num ambiente que tem idas e vindas, você se acostuma. Me apegava a um amigo e já sabia que ia me ferrar. Hoje, ao mesmo tempo em que conheço uma pessoa já espero a partida. É a vida. A parte boa de ter vivido tudo isso é que sou capaz de conversar e interagir com todo tipo de pessoa. Nos abrigos a gente lida com traumatizado, revoltado, crianças boa e carinhosas, tias legais e insuportáveis. Imagina? No orfanato eu cresci com uns 80 moleques. Depois, nos abrigos, são 20 crianças diferentes pra conviver.
E assim foi minha vida até agora. Sempre em casas coletivas… Não me colocaram em adoção quando eu era pequeno porque achavam que eu e meus irmãos iríamos voltar para minha mãe. Mas ela se casou de novo, teve outros dois filhos. Eu até chamei de pai o meu padrasto, ia visita-lo e ele vinha nos ver com a minha mãe. Até que, aos 12 anos, em 2011, eu recebi a notícia de que ela tinha morrido. Foi de Aids. Fiquei mal, muito mal. E aconteceu o pior: eu nem tinha me recuperado quando meu padrasto também faleceu, três anos depois, de overdose. Eu tinha 15 anos. Aí só sobrou minha avó. Mas ela também foi embora, morreu dois meses antes de eu completar 18 anos. Os meus irmão por parte de pai foram adotados pelo tio deles e não tenho contato. Sou eu por mim.
Tenho que tomar muito cuidado para não cair em armadilhas. Um exemplo foi meu primeiro namorado. Ele tinha 30 anos e ficamos juntos cinco meses. Ele chegou a pedir para a juíza para se casar comigo e termos uma família homoafetiva. Mas ele queria mesmo é me dominar, mandar em mim. Me apresentou o mundo gay de um jeito horrível. Só me mostrava lugares com prostituição e drogas. Era para me assustar, para eu não saber viver sem ele. Queria me prender, dizia que eu não conseguir fazer nada sem ele. Quando terminamos, tive depressão. Faltei 90 vezes na escola. Eu não conseguia pensar em nada. Muito menos em como seria a minha saída do abrigo. Tenso.
Foi aí que tive sorte. A direção do SAICA mudou. Trocaram a equipe inteira. Chegaram novos gerentes, assistentes sociais e educadores. Eu já estava participando do projeto Âncora e toda essa mudança foi muito importante para eu me refazer. Era a ajuda que eu precisava. Aos poucos, conversando muito com o Ricardo e com a Olga, percebi que eu tinha vivido um relacionamento abusivo, que precisava planejar meu futuro e aprender coisas básicas como, por exemplo, saber lidar com dinheiro e ser capaz de andar na cidade, entender como funcionavam as linhas de ônibus e metro, conhecer os bairros de São Paulo… Também aprendi muito sobre o mercado de trabalho nas oficinas do Âncora.
Eu não sabia nada das coisas, ainda tenho muito para aprender. Mas o Ricardo, o novo gerente do abrigo, me auxiliou demais até a entender o mundo gay e o meu papel como homossexual, negro e periférico. Ele me aceita sem julgar. Chegou a me levar na parada gay para me mostrar a alegria e a beleza que é ser homossexual como eu sou.
Olha só… quanta coisa mudou em tão pouco tempo, né? Outro dia eu tava na maior deprê agora estou num trabalho que me aceita e me valoriza, tô andando pela cidade pra lá e pra cá sozinho, lidando com um dinheiro que nunca vi na vida, mudei para a república, de horário e turma na escola, posso viajar, andar por aí. E tudo isso sabendo que só eu sou responsável por mim. Sem querer “me achar” mas eu sei que sou capaz de me cuidar. Estou orgulhoso de mim, sabe?
Já duvidaram muito da minha capacidade. Mas não sou nem vou ser um “Zé Ruela”, não. Já vi abrigado sair do acolhimento para ir para o tráfico, pra vida louca na rua. Também acompanhei os que deram certo quando voltaram para a família. Não me encaixo nem num caso nem no outro.